Os nossos ilustres legisladores
surpreendem-nos a cada dia que passa, no que toca a tratar dos grandes
problemas da nação. Parece que está em discussão na Assembleia da República uma
proposta de lei sobre o direito à autodeterminação da identidade de género para
cidadãos a partir dos 16 anos de idade. Um jovem de 16 anos não pode beber uma
cerveja, não pode fumar um cigarro, ainda não vota, mas pode-se autodeterminar
relativamente ao género sexual que consta do registo civil, ainda que com
supervisão parental. Isto pode parecer bizarro, até porque o legislador não
explica muito bem o que está a ser discutido. À partida pareceria estranho um
menor decidir sobre uma cirurgia violenta como será a da troca de género sexual,
mas vamos ver que afinal não é necessária. A proposta de lei está na internet. Infelizmente,
fui ler.
Reza na proposta a definição: “«Identidade de género», a vivência interna e
individual de cada pessoa relativamente ao seu género, independentemente do sexo
atribuído à nascença, que inclui a relação pessoal com o corpo e a expressão de
género, designadamente através da forma de vestir, falar e de estar, envolvendo
ou não a modificação da aparência ou das funções do corpo por meios cirúrgicos,
farmacológicos ou de outra natureza, podendo ocorrer quer com pessoas
transgénero, quer com pessoas intersexuais;”
Aparentemente, a autodeterminação
da identidade de género não requer características físicas específicas. Um
Eleutério pode passar a ser Eleutéria, apenas porque se sente Eleutéria. Não há
requisitos físicos, cirúrgicos, farmacológicos ou de outra natureza. A
identidade de género, aos olhos do legislador, é então um estado de espírito,
embora nesta proposta, implique alteração do nome próprio no Registo Civil.
Ainda na proposta: “Nenhuma pessoa pode ser obrigada a fazer
prova de que foi submetida a procedimentos médicos, incluindo cirurgia de
reatribuição do sexo, esterilização ou terapia hormonal, assim como a
tratamentos psicológicos e ou psiquiátricos, como requisito que sirva de base à
decisão do/a conservador/a.” Não é então obrigatório provar que não se foi
alvo de tratamentos psiquiátricos ou psicológicos. Trata-se de uma
autodeterminação pura.
“A mudança da menção do sexo no registo civil e a consequente alteração
de nome próprio realizadas nos termos da presente lei só poderão ser novamente
objeto de requerimento mediante autorização judicial.” Esta disposição
parece importante na cabeça do legislador, ao colocar a palavra “novamente”, para evitar reversibilidade
do processo. Talvez para evitar que alguns cidadãos possam querer fazer a alteração
apenas para experimentação. Uma barreira à saída. É mais ou menos como quem
decide emigrar durante uns anos da sua vida, e depois decide voltar a casa. Na identidade
de género isso é mais complicado porque requer autorização judicial. Até
percebo o legislador, porque isso poderia baralhar as estatísticas…
Então, estas alterações constarão
no registo civil para efeitos estatísticos. Por se tratar de um processo
confidencial, para efeitos estatísticos, os números de homens e mulheres em
Portugal serão os números registados por atribuição à nascença e posteriormente
corrigidos por requerimentos desta natureza. O género sexual dos humanos
portugueses não é então apenas do foro da biologia, mas também do foro da
autodeterminação. Possivelmente Portugal vai entrar para o Livro dos Recordes Guiness
com a primeira mulher a ter cancro na próstata e o primeiro homem a dar à luz.
Agora, da lei para algumas
questões da realidade:
·
- Neste momento não há serviço militar obrigatório, mas com os tumultos que o mundo vive, não estamos livres de tal coisa num futuro próximo. Poderemos ter então mulheres (biológicas) a ser recrutadas compulsivamente para o serviço militar?
- Temos ainda que alguns políticos, da esquerda à direita, querem criar leis de quotas de mulheres em determinados serviços. Desta forma, se um homem não conseguir encontrar emprego em determinada área, pode sempre trocar de género, porque assim, à partida estará dentro da quota.
- Inversamente, na questão da desigualdade salarial entre homens e mulheres, quantas mulheres irão trocar a identidade para aumentar o rendimento?
- Se ocorrer uma qualquer desgraça do tipo Titanic, o capitão tem a obrigação de encher os botes salva-vidas com mulheres e crianças, ainda que as mulheres possam ser barbudas.
- No desporto – As federações desportivas vão ter de aceitar esta lei? É uma lei de registo civil, o que à partida parece suplantar os regulamentos de uma actividade desportiva. Será que um atleta pode trocar de género e competir com mulheres? Vai ser uma revolução nos recordes nacionais.
- E a Igreja? Vai aceitar casamentos de pessoas de sexo diferente no registo, ou na biologia? A eterna luta entre Deus e a Ciência…
Alguns poderão dizer que é talvez
aqui que se encontra a verdadeira motivação do legislador. Independentemente de
opiniões, será por fruto de interesses, pressões, ou por uma mera estranha luta
de poderes, que agora poderá ser possível casar na Igreja duas pessoas do mesmo
sexo biológico? Basta que uma delas mude o nome? Do requerimento de mudança de
identidade de género resulta a emissão de um “novo assento de nascimento, no qual não poderá ser feita qualquer
menção à alteração do registo.” Se a Igreja não tiver como controlar a data
de emissão deste documento, bastará que um dos noivos se mascare bem na boda
para enganar o padre. Alterar preceitos milenares com base numa lei!? Isso
seria demasiado engenhoso por parte do nosso legislador. Eu acho apenas que o legislador
não sabe, nem se interessa por querer saber resolver os verdadeiros problemas
de Portugal. Parece que o navio tem vários rombos no casco e a tripulação está
ocupada a limpar o convés.
E já que a biologia é irrelevante
e estamos apenas no campo jurídico, se temos direito à autodeterminação da
identidade de género, porque não ter também direito à autodeterminação da
identidade de espécie? Os animais perante a lei são já seres munidos de
sensibilidade, com uma grande vantagem relativamente à espécie humana, pois ainda
não pagam impostos. Na minha qualidade de humano, o meu direito à
autodeterminação de identidade de espécie pode também ser consagrado. Eu posso querer
ser bovino, caprino, asinino ou muar. Pode ter efeitos adversos no que toca à
vacinação, mas isso seria totalmente ultrapassado pelos efeitos fiscais!
No reino animal, quero ainda ter
o direito misto à autodeterminação de identidade de espécie! Posso querer ser
um Spiderman, ou um Batman, um lobisomem ou até mesmo uma sereia! Só a parte
humana é que paga impostos. É metade! Eu, pessoalmente escolheria o Batman,
porque apesar de não ter super-poderes fantásticos, tem o melhor super-poder de
todos – uma conta bancária quase ilimitada. E aí, os efeitos fiscais são irrelevantes…
Já ouvi Ricardo Araújo Pereira
dizer que nos dias que correm é muito difícil produzir humor em Portugal,
porque por vezes o absurdo da realidade ultrapassa toda e qualquer capacidade
criativa, por mais mirabolante que seja. Não sei se estamos perante uma
situação dessas, mas como diria um amigo meu: em Portugal, não há anedotas sobre
políticos; há estórias.